LIVRO DE ENSAIOS

Luiz Ruffato põe ‘A mão no fogo’ por autores brasileiros

Em livro, mineiro defende José de Alencar como fundador da literatura nacional e revaloriza obras de Rosário Fusco, Lima Barreto e Júlia Lopes de Almeida

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Mineiro de Cataguases, Luiz Ruffato cresceu ouvindo histórias sobre um dos nomes mais conhecidos das letras de sua cidade: Rosário Fusco (1910-1977). Mas não foi a proximidade geográfica que fez o romancista e contista estudar a obra de Fusco, nascido em São Geraldo, mas morador de Cataguases desde os primeiros meses de vida. “Muito pelo contrário: acho que teria sido ruim se eu tivesse mantido as ideias que as pessoas de Cataguases têm dele, algo que nunca me interessou e que sempre achei que depõe contra ele”. conta Ruffato ao Estado de Minas.

A trajetória pessoal e literária do autor de “O agressor” é apresentada e analisada em “Achegas para tentar compreender o silêncio que recaiu sobre Rosário Fusco”, um dos ensaios inéditos de “A mão no fogo: Notas à margem da históriada literatura brasileira”, recém-lançado pela Autêntica. No livro, Ruffato defende um “melhor tratamento da crítica literária” a Fusco e afirma que fatos controversos da vida atribulada do mineiro, como a proximidade com ideólogos do governo autoritário de Getúlio Vargas, contribuíram para o “encerramento no limbo do anonimato” e transformaram Fusco em “uma caricatura de si mesmo”.

Coletânea de artigos publicados anteriormente em jornais e revistas, “A mão no fogo” tem como foco aspectos menos comentados da produção literária nacional ao longo dos séculos. “Sempre me interessei e ainda me interesso pela história da literatura brasileira, algo que hoje não é muito falado ou estudado. Em determinado momento, percebi que havia uma linha que ligava todos os textos (publicados por ele sobre o tema)”, revela Ruffato, autor de títulos aclamados como “Eles eram muitos cavalos” (2001), recentemente incluído entre os melhores livros do século 21 em enquete promovida pela Folha de S.Paulo.

Ruffato comenta a escolha dos autores analisados em “A mão no fogo”: “Talvez a escolha dos autores fale muito mais sobre quem escolhe do que sobre os autores em si, no sentido de que, por serem caros a quem escolhe, ganham mais dedicação.” No livro, ele qualifica Guimarães Rosa como “esterilizante” (“Uma literatura tão particular e singular que qualquer coisa que você tentar fazer na mesma linha se torna pastiche”), propõe maior valorização para a obra de Júlia Lopes de Almeida (“Só tem um nome que a ombreia no final do século 19: Lima Barreto”), estabelece diferenças entre os modernistas de São Paulo e os mineiros e defende a relevância histórica de antologias, como a organizada por Graciliano Ramos com nomes de todos os estados nacionais.

Em outro texto inédito incluído no novo livro, “Alencar, fundador da literatura brasileira”, Ruffato aponta quatro pedras fundamentais estabelecidas pelo autor de “O guarani” e “Iracema”: literatura urbana, regional, indígena, histórica. “Alencar, sozinho, funda essa literatura brasileira, oferecendo e escrevendo os caminhos possíveis naquele momento. Ele fundou e deu o primeiro passo. Se essa literatura tem ou não qualidade, isso é outra discussão”, observa.

Enquanto avança em novo romance, o ficcionista Ruffato volta às livrarias em 2026 com um livro de contos pela Companhia das Letras, provisoriamente intitulado “Armadilhas”. Ele também escreve outro livro de ensaios, “um pouco surpreendente por fugir das preocupações que ando tendo”. Leia, a seguir, a entrevista de Luiz Ruffato ao Pensar do Estado de Minas.

Luiz Ruffato, mineiro de Cataguases, autor de
Luiz Ruffato, mineiro de Cataguases, autor de Filipe Ruffato/divulgação

No prefácio de “A mão no fogo”, o professor Pedro Meira Monteiro, da Universidade de Princeton, chama atenção para os “mergulhos verticais em autores e grupos literários”. O que o impeliu a estes mergulhos? E o que une estes mergulhos em um só livro?

A primeira questão é que eu sempre me interessei e ainda me interesso pela história da literatura brasileira, algo que hoje não é muito falado ou estudado. Eu sempre li muita literatura brasileira e comecei a escrever textos sobre, mas eles não tinham nada a ver um com o outro e eu fui publicando ao longo do tempo. Em determinado momento, percebi que havia uma linha que ligava todos eles. “A mão no fogo”, como você deve ter observado, começa no José de Alencar, ou seja, começa na fundação da literatura brasileira. Logo mais ele passa pelo século 19 com Lima Barreto e em um entre século com Júlia Lopes de Almeida. Depois, entro firme no modernismo, discutindo questões das revistas, da geração de 30 (se eram ou não modernistas), do regionalismo, que é uma questão diretamente ligada ao modernismo, chegando no Rosário Fusco e as antologias. Ou seja, existe uma linha cronológica muito clara que liga todos os textos embora, quando inicialmente eu comecei a escrever esses textos independentes não havia essa perspectiva. Aliás, só fui ter essa noção mesmo ao relê-los e perceber que havia ali uma linha que os ligava.

Por que considera José de Alencar o fundador da literatura brasileira?

José de Alencar foi, sem dúvida, para além de sua importância como escritor de romances, o fundador de uma literatura, no caso da literatura brasileira. Por quê? Porque ele enfrentou esse problema em um país que não havia literatura, não havia uma tradição literária. Assim, sozinho, ele funda essa literatura brasileira, oferecendo e escrevendo os caminhos possíveis naquele momento. Então, ele escreve literatura urbana, literatura regional, literatura indígena – que era algo que, para o Brasil daquela época era algo importante – e ele escreve, também, literatura histórica.

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Ele funda essa literatura, ele dá o primeiro passo. Se essa literatura tem ou não qualidade, isso é outra discussão. Mas, sem dúvida nenhuma, a importância do José de Alencar é indiscutível e eu falo, no texto, que ele não só funda essa literatura como ele a pauta. Quer dizer, toda a literatura depois dele, até pelo menos meados do século 20, está diretamente ligada a essa pauta que ele fez lá atrás, seja como literatura urbana, rural ou regional. Inclusive, o regionalismo vai tomar uma importância muito grande na literatura brasileira da década de 30, mas tem também a literatura histórica, que é uma literatura impalpável – que se faz independentemente de ser pautada ou não –, mas, de qualquer forma, foi ele que deu esse caminho.

E, curiosamente, ele vai também pautar a questão da literatura indigenista que Mário de Andrade se preocupou anos depois. Algo que, mais tarde, culmina na década de 1960 com o Antonio Callado escrevendo o “Quarup” que, apesar de evidentemente não ser literatura indigenista, tem a ver com essa preocupação de criar uma nacionalidade, uma literatura que tivesse uma marca muito pessoal e que poderia ser adjetivada como brasileira. Agora no século 21 vê-se um renascimento com muita força desta pesquisa a partir de uma visão própria da literatura indígena. Temos aí vários autores indígenas reescrevendo essa história.

Por que considera a trajetória de Júlia Lopes de Almeida “um dos casos mais graves de omissão da ensaística brasileira”?

Júlia Lopes de Almeida só tem um nome que a ombreia no final do século 19: Lima Barreto. Acho que não tem nenhum autor ou autora que no final do século 19 estivesse com uma obra tão potente quanto o Lima Barreto e a Júlia Lopes de Almeida. Curiosamente, com Lima Barreto colocando em evidência a discussão sobre a questão da presença dos negros na literatura e Júlia fazendo o mesmo, mas em relação à mulher. Os romances da Júlia são muito interessantes porque o papel das mulheres é muito relevante e consistente. E, para mim, pelo menos, ela tem dois grandes romances que deveriam estar no cânone desde a época em que foram escritos: “A falência” e “A viúva Simões”.

Na época, ela foi uma autora respeitada. Mas, por ser mulher – e não há nenhum vitimismo nisso e eu acredito demonstrar muito claramente no texto –, ela foi colocada de lado tanto por seus contemporâneos, ali no finalzinho do século 19 e início do século 20, quanto pelos modernistas. Não há dúvida a respeito da importância deles para a literatura brasileira, mas os modernistas brasileiros cometeram algumas injustiças absurdas. Porque, para praticamente obrigar as pessoas a acreditarem que eles estavam fundando a literatura brasileira, eles defendem um lugar muito claro em que colocam que antes deles não existia literatura no Brasil, e ela passa a existir depois deles. E com isso, evidentemente, eles matam, ou pelo menos tentam matar, a obra do Lima Barreto – que só veio a ser rediscutida e revalorizada na segunda metade do século 20 –, e a obra de Júlia Lopes de Almeida, que só vem a ser revalorizada agora, na segunda década do século 21, o que é uma injustiça absurda. Uma autora que, sem dúvida alguma, não tem nenhum autor que se equipara, inclusive em todos aqueles livros que a gente estuda, canônicos do final do século 19 que, como a crítica não sabe muito bem como definir, os chama de pré-modernismo, o que é um absurdo. Não existe pré-modernismo na literatura, inclusive porque não sabiam que existiria o modernismo. Isso é uma invenção da crítica preguiçosa que não consegue identificar e definir o que está acontecendo naquele determinado momento tão interessante e híbrido.

Você afirma, em um dos ensaios, que Minas Gerais teve um “surto modernista” que foi mais notado no interior do estado do que em BH. Podemos falar da existência de um “modernismo mineiro” ou de um “modernismo à mineira”?

No texto que escrevi que saiu na coletânea “Modernismos (1922-2022”), organizada pela Gênese Andrade, fica claro que, para mim, não existiu um modernismo mineiro, mas certamente o modernismo em Minas era muito diferente do modernismo em São Paulo. Os modernistas mineiros eram muito mais conservadores, tanto do ponto de vista formal quanto ideológico, tanto que quem vai estar na base da ideologia cultural do governo Vargas vai ser o núcleo de Minas Gerais, e não é à toa. Então, não acho que a gente pode chamar de modernismo mineiro, inclusive porque como bem diz o título do livro da Gênese, foram modernismos. No meu texto, eu falo sobre as diversas revistas que existiram por todo o Brasil naquele período da década de 20 e 30, e como cada uma delas, a seu modo, tinham pontos em comum e, de alguma maneira, apontavam para um caminho.

Por isso, o modernismo que se fez em Minas Gerais, principalmente o de Belo Horizonte, foi um modernismo muito conservador. O de Cataguases já foi um pouquinho mais ambicioso e talvez até mais atrevido, mas também sem grandes revoluções. Não era subversivo o modernismo que se fazia em Minas Gerais, diferentemente de São Paulo. E acho que esse modernismo mineiro tem essa característica muito forte que iria, depois, dar no maior poeta brasileiro do século 20, Carlos Drummond de Andrade, e em alguns prosadores, como Cyro dos Anjos, que é um modernista machadiano, vamos dizer assim. Enfim, você tem uma plêiade de escritores que são menos afoitos que os modernistas paulistanos.

Por que você define Guimarães Rosa como um “autor esterilizante”? Consegue identificar outros exemplos de autores da língua portuguesa na mesma condição?


Guimarães é um caso por ser um autor que não deixa descendentes e, por isso, uso a expressão esterilizante. Eu já observei várias vezes alguns autores tentando se colocar debaixo desse guarda-chuva do Rosa, escrevendo à moda roseana e é péssimo, são epígonos. Não há como escrever como Guimarães Rosa, é impossível pois ele é único. É uma literatura tão particular e singular que qualquer coisa que você tentar fazer na mesma linha é pastiche. E pastiche não é literatura, pastiche é pastiche.

Há outros casos, evidentemente, todos aqueles autores que, de alguma maneira, têm uma marca tão singular e tão própria que se você se filiar a ele, você está, de alguma maneira, se desfazendo de sua própria voz. Em menor escala, há um caso que compartilha desse caminho: Clarice Lispector. Autores que se querem lispectorianos acabam virando só pastiches da Clarice. Porque ela também tem essa singularidade e essa voz tão bem definida que, se você aproximar sua voz com a dela, você certamente desafina.

“A mão no fogo” aponta dois aspectos “distintos, mas complementares” para explicar o silêncio em torno da obra do mineiro Rosário Fusco (1910-1977). Poderia resumir os dois aspectos? E por que este silêncio prossegue, mesmo tanto tempo depois da morte do autor? Podemos definir “O agressor” como um corpo estranho na literatura brasileiro da primeira metade do século 20? Acredita que este livro, e a própria obra de Fusco, podem ainda ser “resgatadas do pântano do esquecimento”?

Acho que, neste texto, consegui levantar bastante coisa inédita de Rosário Fusco, principalmente com o que ele escreveu sobre os discursos do Getúlio Vargas. Por um lado, ele acaba ficando à margem da literatura pois ali nas décadas de 40, 50 e 60 ele faz uma literatura muito diferente do que se fazia na época e, talvez até hoje. Ele produz uma obra muito particular, não havia nenhum outro autor dialogando com ele naquele momento, é uma literatura estranha à que se fazia e ainda se faz. Alguns críticos apelidam de uma literatura dostoievskiana mas não. É uma literatura com influências de surrealismo, expressionismo, Dostoiévski também, sem dúvidas, mas há ainda uma presença muito forte de um catolicismo não-militante. Enfim, ele produz um caldo muito particular.

Mas, por outro lado, ele acabou ficando à margem, digamos assim, pois a maneira como ele se filiou ao varguismo foi algo muito deplorável. Agora, eu acho que há um erro de avaliação muito grande porque, veja bem, até Louis-Ferdinand Céline, escritor francês que foi um simpatizante claro ao nazismo escrevendo panfletos antissemitas, foi reabilitado. Separou-se o Céline escritor do Celine mau-caráter. No Brasil, no entanto, a crítica não quis entender a obra de Fusco, e ele caiu em um limbo. Algumas pessoas que incensam ele como um sujeito maledicente mas isso não tem a menor importância, o que importa é a obra dele – não lida, não criticada e não discutida – , e não ele como sujeito.

Continuo fascinado e acho ele um grande escritor. Acho, ainda, que ele merece uma releitura, uma releitura decente, tranquila e serena para ressaltar o que há de original e vanguardista, o que ele realmente tem de escritor.

Ao defender a importância das antologias para estabelecimento de uma política literária, você detalha o trabalho de Graciliano Ramos na seleção de narrativas para “Contos e novelas”, divididos por regiões. Como analisa os critérios utilizados pelo alagoano e o que se destaca nos nomes que ele escolheu para representar Minas Gerais?

Bom, entre as antologias que eu cito no texto, a de Graciliano me interessa por dois motivos. O primeiro é porque ele faz uma antologia muito original, diferente do que era feito e ainda é, em que, partindo de uma ideia, de um mote estabelecido, o pesquisador pega autores canônicos e escolhe os textos. O Graciliano não faz assim, ele decide fazer uma antologia de contos, e não de autores, e para isso ele lê diversos livros de contos, fazendo uma pesquisa densa na Biblioteca Nacional com materiais até de Suplementos Literários. Então, a partir desse trabalho, ele escolhe os melhores contos de seu ponto de vista para uma antologia. E as escolhas que ele faz são também interessantes, pois ele não se prendeu e nem se deixou levar pelo cânone, ele parte de sua leitura particular. É uma pena que essas antologias nunca mais foram republicadas.

O que também é interessante é tentar compreender o motivo para Graciliano escolher aqueles contos e não outros. Ou melhor: por que ele achou que aqueles contos eram bons? Há na antologia vários autores que muitos nunca ouviram falar antes, autores que escreveram pouco ou morreram cedo, ou que se dedicavam à outra área da ficção como romancistas, poetas, e não contistas. É muito curioso tentar compreender a mente do Graciliano Ramos, entender como ele conseguiu antologizar aqueles contos.

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Em blog, um “caderno de anotações íntimas”

Escritor explica como surgiu o blog “Do que é feito o passado”

“Do que é feito o passado” é um caderno de anotações íntimas em que tento fixar algumas memórias que, com o passar do tempo, vão se tornando névoa e a gente vai esquecendo. Chega uma certa altura da vida em que nós temos a necessidade de fazer um balanço da vida da gente, do que nós fizemos ou deixamos de fazer. Do que valeu a pena e do que não valeu, do que nos orgulhamos e do que nós lamentamos. Então, esse blog, acho que posso chamar assim, é algo como isso: tentar um balanço afetivo. Não tem a ver com literatura, quer dizer, o texto pode até ser literário, mas a ideia não é discutir ou repensar a literatura, e sim resgatar memórias da infância, adolescência, pessoas que eu conheci ao longo da vida e admiro. Agora, pessoas que não admiro certamente não vão estar presentes no blog, porque eu acho que devemos guardar somente as boas recordações e as más, não.”

“A mão no fogo: Notas à margem da história da literatura brasileira”
• De Luiz Ruffato
• Autêntica
• 208 páginas
• R$ 67,90

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cataguases literatura minas-gerais

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