POESIA

Em 'Outras peles', Lucas Guimaraens revela a poesia como prática cotidiana

Poeta mineiro reflete sobre ancestralidade, linguagem e afeto no novo livro, que chega em formato plaquete pela editora Fósforo

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Poesia a todo momento: em casa, na rua, no supermercado, enfim, em todo canto onde palavras, sons, versos, sílabas e pensamentos vestirem corpos para desnudar a alma. E buscarem “outras peles” construídas pela linguagem. “São as linguagens do tempo, da memória, da raça, do gênero, da geografia, da língua. São peles que carregam marcas de origem, mas também de apagamentos históricos”, revela o poeta, ensaísta e tradutor belo-horizontino Lucas Guimaraens, autor de “Outras peles”, publicado na coleção Círculo de Poemas (Editora Fósforo). 

O lançamento do livro, no formato “plaquete”, explicado por Lucas em entrevista ao Pensar, será neste sábado (13), às 14h, na Livraria Quixote, em Belo Horizonte, no Sempre Um Papo. Estarão com ele, à mesa, as poetas Ana Elisa Ribeiro e Adriane Garcia, para leituras e debates sobre os poemas e sobre a obra. “Elas são, como diria Waly Salomão, o mel do melhor de nossa poesia. A verdade é que Minas Gerais é um enorme fazedor de poetas incríveis”, afirma o autor. 

Autor de livros como “Exílio: o lago das incertezas”(2017) e “Amarrar o corpo na lua” (2022), Lucas pertence a uma linhagem de escritores que inclui Bernardo Guimarães, autor do célebre romance “A escrava Isaura”, Alphonsus de Guimaraens, poeta simbolista, autor de “Ismália”, João Alphonsus, que se destacou como contista e foi responsável por introduzir esse formato literário no modernismo brasileiro, Alphonsus de Guimaraens Filho, integrante da geração de 1945 do modernismo, e Afonso Henriques Neto, da geração mimeógrafo, iniciando o movimento com Eudoro Augusto. Sobre os antepassados, o belo-horizontino nascido em 1979, bacharel em direito e doutor em filosofia pela Universidade de Paris, França, tem feito descobertas. Entre elas, a de que Bernardo Guimarães (1825-1884) seria filho de uma “mulata forra”e que na linhagem de Alphonsus de Guimaraens havia sangue Krenak. “Essas descobertas não são folclore genealógico; são feridas e também possibilidades de alegria”, observa.

ATRAVESSAR FREQUÊNCIAS 

O título “Outras peles”foi escolhido, explica o autor, “porque somos sempre atravessados por outras existências e a poesia é o lugar em que essas peles se encontram”. Assim, “a poesia, ao contrário do que se pensa imediatamente, não é ato de leitura, mas ato de escuta”. E, bem-humorado, ri quando o repórter faz um trocadilho entre o título da obra e o do filme “A pele que habito”(2011), do espanhol Pedro Almodóvar. “Um Almodóvar comedor de pão de queijo”, se declara mineiramente. 

Sobre o ato de criar, Lucas conta que escreve como quem escuta. E não acredita em inspiração como sopro divino, mas em atenção radical “ao que vibra”– no cotidiano, nas viagens, na observação, mas também no silêncio da montanha ou na fila do supermercado. “A poesia nasce do gesto de dar linguagem ao que pulsa na sombra, ao que não encontra ainda forma. Meu trabalho é atravessar essas frequências, como se cada poema fosse um rádio que capta vozes antigas, do passado e do porvir (porque não há presente)”, afirma.

Em dos poemas do livro – “Para ler na fila do supermercado”– se lê a epígrafe “Os afetos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra”(Deleuze e Guattari), que merece a seguinte observação de Silviano Santiago, em “O legado poético e sua desconstrução”sobre os versos de Lucas Guimaraens. “Volto ao sentido ‘literal’para ler a epígrafe, tomada a Gilles Deleuze (1925-1995, filósofo francês). Afetos se os há em ser invisível são flechas, armas de guerra, que atravessam o corpo”. Ainda conforme Santiago: “O legado que o poeta recebe e o resume em dados nada circunstanciais, em termos tão felinos ou tão ferinos quanto uma faca com as qualidades do gume, uma faca só lâmina, o legado é tão dolorido quanto a dor que deveras se sente quando se é legítimo o herdeiro da linguagem poética”. 

E teria na fila do supermercado um lugar para a poesia? Na resposta, Lucas tem palavras com o corte afiado de uma lâmina. “Poesia não é refúgio de sábios: é prática cotidiana, atravessa a carne. Os afetos são flechas porque o mundo nos atravessa sem pedir licença. Escrever (ou ler) um poema na fila do supermercado é afirmar que poesia não precisa de templo, de solenidade, de ocasião especial. Ela é para todo mundo porque todos carregam a linguagem.” 

Totalmente à vontade com seus escritos, Lucas Guimaraens diz a poesia é sua casa. “Mas é uma casa de portas abertas, onde entram ecos, ruídos, fantasmas, ancestrais. E também entram amores, amizades e permite que encontros, como o lançamento do meu livro, aconteça. Todo encontro poético é um acaso de coração.”

“Poesia é prática cotidiana, não é um refúgio de sábios”

Entrevista/ Lucas Guimaraens 

Poeta, ensaísta e tradutor

Ao ler os poemas, senti um tom confessional. Temos, portanto, fragmentos de uma autobiografia em versos? 

O livro é atravessado por mim, mas não se reduz a mim. Há uma zona onde o íntimo e o coletivo se confundem — o tom confessional existe, mas é a superfície. O que existe, de fato, são os atravessamentos pelos quais todos nós passamos na vida pessoal e na vida coletiva. Aquilo que fica impregnado como se fosse o barro na roupa. No subterrâneo, o que vibra é o corpo que escreve como lugar de escuta, onde as vozes da genealogia, da história, do cotidiano, da memória e da não-memória se encontram. “Outras peles” não é minha autobiografia, é a tentativa de escrever a vida como se fosse possível traduzi-la em ressonâncias, em reverberações do que já foi vivido, ouvido e transmitido. Como lembrou Silviano Santiago em seu texto crítico sobre meu livro, trata-se de um gesto que ultrapassa o indivíduo e toca a tradição literária mineira e brasileira. É, também, um ato de reparação, na medida em que aparecem, aqui e ali, fatos que eu até então desconhecia sobre mim mesmo e sobre minhas origens. E, no fundo, estas origens é o ser brasileiro. 

Poderíamos dizer, num trocadilho com o título, que são “outras peles” que habito? Por que esse título? 

Hahaha. Um Almodóvar comedor de pão de queijo. Sim, habito outras peles e elas são, todas, construídas pela linguagem: as do tempo, as da memória, as da raça, as do gênero, as da geografia, as da língua. São peles que carregam marcas de origem, mas também de apagamentos históricos. Descobri, por exemplo, que Bernardo Guimarães seria filho de uma mulata forro, que na linhagem de Alphonsus de Guimaraens havia sangue Krenak. Essas descobertas não são folclore genealógico; são feridas e também possibilidades de alegria. Outras peles é título porque somos sempre atravessados por outras existências e a poesia é o lugar em que essas peles se encontram. A poesia, ao contrário do que se pensa imediatamente, não é ato de leitura, mas ato de escuta. E escrever também é ato de escuta. A escuta é ato originário de todo ser humano, ainda no ventre materno, quando estamos harmonizados pelos barulhos da voz da mãe, sem sequer saber que existimos. 

Como você constrói seu trabalho? Na verdade, de onde vem inspiração: do cotidiano, das vivências, de viagens ou da simples observação do mundo? 

Escrevo como quem escuta. Não acredito em inspiração como sopro divino, mas em atenção radical ao que vibra – no cotidiano, nas viagens, na observação, mas também no silêncio da montanha ou na fila do supermercado. A poesia nasce do gesto de dar linguagem ao que pulsa na sombra, ao que não encontra ainda forma. Meu trabalho é atravessar essas frequências, como se cada poema fosse um rádio que capta vozes antigas, do passado e do porvir (porque não há presente). 

O poema “Para ler na fila do supermercado” reúne um ato bem prosaico do cotidiano (ir ao supermercado) com a citação tão profunda (na epígrafe) — “Os afetos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra” (Deleuze e Guattari). Pode-se dizer que poesia é para todos os momentos? Ou: poesia é para todo mundo? 

Poesia não é refúgio de sábios: é prática cotidiana, atravessa a carne. Os afetos são flechas porque o mundo nos atravessa sem pedir licença. Escrever (ou ler) um poema na fila do supermercado é afirmar que poesia não precisa de templo, de solenidade, de ocasião especial. Ela é para todo mundo porque todos carregam a linguagem. Somos seres de linguagem, de melodia, de imagem e de (des)razão. E tudo isso compõe um poema, pelo menos para Ezra Pound em seu ABC da Literatura. O poema não pertence a um círculo fechado; ele é ato de abertura. 

Nesses tempos que assustam a humanidade, qual o lugar da poesia? E quais devem ser nossas “armas de guerra”? 

A poesia é um gesto contra o apagamento. Quando tudo parece ser administrado pelo cálculo, pelo ódio ou pelo mercado, o poema irrompe como linguagem que ainda sabe dizer “não”. Nossas armas não são de destruição, mas de memória, de imaginação, de alteridade. A poesia não resolve, mas abre espaço de convivência e de “allégresse” – essa alegria profunda de existir com o outro, como diz o filósofo francês, grande amigo, Jacques Poulain. E esta alegria não é uma alienação das feridas do corpo e da linguagem. Ela é a alegria de compartilhar a vivência através da linguagem poética. De fazer surgir a escuta. Silviano Santiago percebeu em “Outras peles”exatamente essa escrita que não se dobra ao cálculo nem ao ódio, mas que abre a escuta e compartilha o vivido. 

Você escreve poemas desde adolescente? É sua melhor forma de se expressar? 

Sim, escrevo desde muito cedo. Meu primeiro poema escrito foi aos 3 anos. A poesia e os poetas sempre estiveram em casa. Soube, então, desde cedo, que o poeta é qualquer um, de carne, de osso, de sangue. Que vive, envelhece, morre. Mas a cada livro percebo que não se trata apenas de “me expressar”. Trata-se de escutar e dar forma ao que não é só meu. A poesia é minha casa, mas é uma casa de portas abertas, onde entram ecos, ruídos, fantasmas, ancestrais. E também entram amores, amizades e permite que encontros, como o lançamento do meu livro, aconteça. Todo encontro poético é um acaso de coração. 

Quem você gostaria, em toda a história da humanidade, que lesse um poema seu? E por quê?

 Gostaria que todo leitor anônimo, invisível, esquecido pela história, pudesse ler. Não é uma figura de retórica: é porque acredito que a poesia só se realiza quando encontra o outro. Mas, se fosse escolher um nome, talvez Paul Celan – porque ele soube escrever depois do indizível, e sua leitura seria também um diálogo de sobreviventes pela palavra. E estamos em uma época que precisamos, cada vez mais, aprender a sobreviver. Dos vivos, ah, muito difícil dizer. Pense em um nome que, provavelmente, eu gostaria que esta pessoa lesse. O poema não é um balão dirigível. O poema não se educa. 

Para concluir, poderia explicar aos leitores o que é “plaquete”? 

A plaquete é um formato breve que nasceu historicamente como um meio ágil de difusão de poesia. Depois, se desenvolveu como um suporte para uma escrita mais experimental ou alternativa de um determinado autor ou autora. Não é um “livro menor”. Atualmente, é um livro como qualquer outro: contém a totalidade de uma experiência poética. Em ‘Outras peles’, a escolha do formato é também simbólica: trata-se de uma pele mais curta, mais rente, mas que concentra toda a intensidade do vivido. Não há menor intensidade. É um copo menor, como o da cachaça. Não deve nada a ninguém. 

“OUTRAS PELES”

De Lucas Guimaraens

Editora Fósforo

40 páginas

R$ 47,90 (livro físico) e

R$ 33,50 (e-book)

Lançamento neste sábado (13/9), na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi), em BH, a partir de 14h, em bate-papo com Ana Elisa Ribeiro e Adriane Garcia


TRECHO DO LIVRO

Genética

Nasci branco disse avó sinhazinha de escravos pretos.

Nasci latino como se houvesse continente latino.

Nasci voraz de patrimônios

uma queda por diamantes

em pendores de ouro.

Latia em mim um tamanduá-bandeira

que as curvas não permitiam ver

senão o branco como uma tela cor de nada.

Latia em mim um tamanduá-bandeira

e folhas de bananeiras se entreabriam

como um bandeirante de botinas

a descobrir seus passos nus grudados à terra krenak:

de nome Anira na colmeia e nos cachos lisos da mãe

[Zenaide

abelha solitária que me latia e balançava asas como

[maracás.

Depois latiram embarcações

mãe de Bernardo – esqueleto esbranquiçado das minas que

habitavam e era uma estrada curva sem enxergar senão o

branco como uma tela cor de nada.

Latiam e pensava em ave-marias ou na morte de deus

que os latidos eram medo perdido no breu

até cair da árvore a preta e os orixás que fundaram

não a família mas a história

das cidades do estado do país.

Bernardo despedaçado enforcado na branquitude que

[não havia.

Em tão pouco tempo de mar

de serpente de rios – de vida? –

adestrado a amar nu

seria possível

refundar o amor com tantas peles?

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