POESIA

Murilo Mendes: poesia completa do modernista mineiro ganha edição histórica

Obra reúne 50 anos de produção literária do poeta de Juiz de Fora em único volume; lançamento em BH terá palestra e leitura de textos no projeto Letra em Cena

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São cinco décadas na vida de um mineiro que correu mundo, marcou seu tempo com a arte da palavra escrita e pavimentou o caminho com densidade estética. De 1925 a 1974, foram centenas de poemas e prosas de autoria de Murilo Mendes (1901-1975), considerado um dos maiores nomes da literatura brasileira no século 20 – ao lado de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Manuel Bandeira (1886-1968) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Agora, pela primeira vez reunidos em único volume, os versos do mineiro de Juiz de Fora chegam aos leitores em “Murilo Mendes – Poesia completa” (Companhia das Letras). 

Em Belo Horizonte, o livro com 904 páginas será lançado na próxima terça-feira (16/9), às 19h, no projeto Letra em Cena, na Biblioteca do Centro Cultural Unimed-BH Minas (Rua da Bahia, 2244, Bairro de Lourdes). Na ocasião, haverá palestra do professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP) e crítico literário, Murilo Marcondes de Moura, sobre a obra da qual esteve à frente da coordenação editorial juntamente com Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. “Temos, neste livro, 50 anos de produção literária, uma síntese da poesia brasileira”, diz Marcondes. 

A obra obedece a uma organização cronológica, com a produção em português e poemas escritos em italiano e francês, agora traduzidos. “Nos seus últimos 18 anos de vida, Murilo Mendes morou em Roma, e dava aulas de literatura brasileira”, informa o professor e crítico. Para Murilo Marcondes, uma das mais importantes características do mineiro foi sua ligação com arte de maneira múltipla, especialmente música, pintura, artes plásticas. “Era culto, tinha densidade estética”, afirma. 

TODAS AS ARTES 

Ao unir referências à música, à pintura, à dança e ao cinema, o poeta não se deixou limitar pela moldura do verso e buscou juntar todas as artes em um projeto poético radical e ambicioso. Para além das alusões ao universo cultural, sua produção estabelece diálogo constante com as marcas do seu próprio tempo. Na palavra da equipe de coordenação editorial, há desejo, erotismo, vida, morte, terra e céu, carne e espírito – mas há também conflitos sociais, guerra, miséria. Nessa profusão de imagens, surge ainda o interesse pelas vanguardas, pelo mítico e pela religião, numa obra capaz de ampliar os sentidos e derrubar aparentes contradições. 

Eis um verso de “Ofício humano”: “O poeta abre seu arquivo – o mundo – / E vai retirando dele alegria e sofrimento/ Para que todas as coisas passando pelo seu coração/ Sejam reajustadas na unidade”. 

A obra agora lançada inclui desde “Poemas”(1930), o livro de estreia, até “Conversa portátil”(1975), e traz dois volumes escritos em língua estrangeira e que estavam inéditos em português: “Hipóteses”(1968), traduzido do italiano por Maurício Santana Dias, e “Papéis”(1931-74), traduzido do francês por Júlio Castañon Guimarães. Para encerrar, há ensaios inéditos assinados por Davi Arrigucci Jr., Murilo Marcondes de Moura e Júlio Castañon Guimarães, além de cronologia e bibliografias do autor e sobre ele.

O HOMEM E O TEMPO 

Murilo Mendes nasceu em Juiz de Fora, em Minas Gerais, em 1901. Estreou com “Poemas”, em 1930, considerado, pelo escritor paulista Mário de Andrade (1893-1945), “historicamente o mais importante dos livros do ano”, e se consagrou como uma das principais vozes do modernismo brasileiro. Do autor, a Companhia das Letras publicou o irreverente livro de memórias “A idade do serrote”, a prosa inventiva de “Poliedro” e “Poesia completa”. Murilo Mendes morreu em Lisboa, em 1975.

“MURILO MENDES – POESIA COMPLETA” 

De Murilo Mendes 

Organização: Augusto Massi, Julio Castañon e Murilo Marcondes de Moura 

Companhia das Letras 

904 páginas

R$ 299,90 (livro físico) e R$ 49,90 (e-book) 

Lançamento na terça-feira (16/9), às 19h, no projeto Letra em Cena, na Biblioteca do Centro Cultural Unimed-BH Minas (Rua da Bahia, 2244, perto da Praça da Liberdade), com palestra do professor de literatura da USP e crítico literário Murilo Marcondes e leitura de textos por Ana Martins Marques, Mário Alex Rosa, Rafael Belúzio e Simone Andrade de Neves. Curadoria de José Eduardo Gonçalves.


TRECHOS DO LIVRO

POEMAS (1925-1929)

O menino sem passado

Monstros complicados

não povoaram meus sonhos de criança

porque o saci-pererê não fazia mal a ninguém

limitando-se moleque a dançar maxixes desenfreados

no mundo das garotas de madeira

que meu tio habilidoso fazia para mim.

A mãe-d’água só se preocupava

em tomar banhos asseadíssima

na piscina do sítio que não tinha chuveiro.

De noite eu ia no fundo do quintal

pra ver se aparecia um gigante com trezentos anos

que ia me levar dentro dum surrão,

mas não acreditava nada.

Fiquei sem tradição sem costumes nem lendas

Estou diante do mundo

deitado na rede mole

que todos os países embalançam.

*

SONETOS BRANCOS (1946-1948)

Ouro Preto

A alma livremente encarcerada

Comunica-se com os doidos e os poetas

Que pelas frias naves dão-se os pés.

Sinto grego o céu de outrora me envolver.

A cavalo sobre as igrejas de pedra

Irrompe o Aleijadinho na sua capa.

Nas linhas de ar balança-se o relógio

Marcando cegamente o compasso do tempo.

Um vulto cruza outro na ladeira.

Pelos desertos espaços metafísicos

Arrastam-se as sandálias da pobreza.

Das varandas azuis tombam ossadas:

Ouro Preto severa e íntima adormece

Num abafado rumor de águas subterrâneas.

*

TEMPO ESPANHOL (1955-1958)

Canto a García Lorca

Não basta o sopro do vento

Nas oliveiras desertas,

O lamento de água oculta

Nos pátios da Andaluzia.

Trago-te o canto poroso,

O lamento consciente

Da palavra à outra palavra

Que fundaste com rigor.

O lamento substantivo

Sem ponto de exclamação:

Diverso do rito antigo,

Une a aridez ao fervor,

Recordando que soubeste

Defrontar a morte seca

Vinda no gume certeiro

Da espada silenciosa

Fazendo irromper o jacto

De vermelho: cor do mito

Criado com a força humana

Em que sonho e realidade

Ajustam seu contraponto.

Consolo-me da tua morte.

Que ela nos elucidou

Tua linguagem corporal

Onde EL DUENDE é alimentado

Pelo sal da inteligência,

Onde Espanha é calculada

Em número, peso e medida.

*

CONVERSA PORTÁTIL (1931-1974)

Canto novo

O espírito suspende a lâmpada do encanto

no terraço do mundo.

Formas dormindo

carnes na sua verdadeira atitude

quem definirá a estrela da manhã

sem a influência de corpos multiplicados

tapando a vista dos problemas celestiais?

Luz eterna sobre a matéria

noite sobre o espírito

nascimento de ideias múltiplas

na arquitetura do previsto,

menina que vira flor

substância que vira abstração

canto que vira dança

deus que morre numa cruz pra variar de essência

tudo me invoca para ultrapassar minhas dimensões

ó elasticidade da minha memória

ó eternidade!



*

CONVERGÊNCIA (1963-1966)

Grafito num muro de Roma

Um verme rói – enorme roer –

Um verme rói minuciosamente

Desde que o tempo sentou-se sobre si

A trombeta ovoide.

Um verme ecumênico

Teólogo teleológico

Rói a priori – único tóteme –

O filme da história total.

Um verme enorme rói

Um verme inerme rói

Qualquer julgamento

Presente futuro

Pessoal universal

Miguelangelesco ou não.

Um verme irreversível rói a tiara

Suspensa de palácios terrosos.

A eternidade criou tantos dédalos

Que já perde a noção de espaço.

Procurando homem por homem

Urbi et orbi

Procura-se a si mesma sem sua túnica:

Mínima. Finita. Ex.

A eternidade acaba desconhecendo

As próprias catacumbas escâncaras

Os próprios arcos de triunfo no tempo

Idos calendas calêndulas

Os leões alados & seus espaços monumentais

Os falos suspensos em obelisco

Os essedários & os éssedos

Os imperadores de pedra

Levantando irrespondidos braços.

A eternidade anoitece

A cavalo sobre seus palácios

Ocre.

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