TRABALHO SOCIAL

Mural busca valorização e resgate dos cursos d’água do Aglomerado da Serra

Com o nome de "Águas da Serra", o trabalho feito pelo artista Jorge dos Anjos está estampado nas paredes das casas da comunidade

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Respeito, cor e ritmo foram algumas das palavras usadas pelo artista Jorge dos Anjos para definir o macromural que foi finalizado ontem (12/9) no Aglomerado da Serra, na região Centro-Sul de Belo Horizonte (MG). “Eu pensei primeiro nas nascentes e depois na questão da cor. Eu queria fazer uma coisa muito colorida e bonita, como se fosse uma música, como quando você escuta uma música para dançar, que tem ritmo, que é vibrante. Então, a inspiração vem daí também”, conta.

A arte leva o nome “Águas da Serra” e homenageia as nascentes que cortam a Serra e marcam a história da região. Para isso, Jorge usou elementos que remetem aos cursos d’água e, coroando o mosaico, o grande leque de Oxum, a orixá conhecida como a Rainha da Água Doce. A inauguração oficial está marcada para amanhã (14/9).


Ao Estado de Minas, o artista revelou que desde que viu o mega na Vila Nova Cachoeirinha, feito pela artista belo-horizontina Criola, em 2022, e pode ser visto da Avenida Antônio Carlos, quis participar do projeto. O convite surgiu de Juliana Flores, diretora artística e curadora do Mamu, e aceito prontamente.


Ao ver a obra completa, Jorge considera que ficou melhor que o projeto. “O processo e a equipe de produção, que pinta, que monta o andaime, sempre com respeito pelos moradores. Como você entra na casa das pessoas, tem que ter um respeito e um cuidado muito grande, e isso tudo faz parte do resultado”, reflete.


Da Praça do Cardoso, o artista plástico Thiago Alvim atuava como coordenador de pintura. De walkie-talkie na mão, ele olhava atentamente a atividade dos pintores pelo binóculo dando instruções para que tudo saísse corretamente. Para Jorge dos Anjos, o trabalho se compara ao de um maestro.


“Eu fico aqui do outro lado ajustando os desenhos, como se eu estivesse afinando um instrumento. Coordeno a galera para alinhar o desenho de uma casa com outra, para que no final todas as casas formem um só desenho. Está maravilhoso, e quando a gente vê o olho do próprio morador brilhando, é muito gratificante”, disse Alvim enquanto acompanhava a pintura da última casa.

Jorge dos Anjos usou elementos que remetem aos cursos d’água e coroou o trabalho com o grande leque de Oxum, a orixá conhecida como a Rainha da Água Doce
Jorge dos Anjos usou elementos que remetem aos cursos d’água e coroou o trabalho com o grande leque de Oxum, a orixá conhecida como a Rainha da Água Doce Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press


Macromural


Segundo a organizadora do Mamu, Juliana Flores, a escolha do Aglomerado da Serra se deu pela sua importância para a capital, sendo uma das maiores favelas de Minas Gerais e um território com grande potencial cultural e econômico. Para colocar o projeto em prática, uma equipe foi ao território escutar os moradores e suas demandas, chegando ao tema escolhido.


“Eu acho que, finalmente, chegou o momento, com o Mamu amadurecido, na maior favela de Minas Gerais e quando a gente começou a percorrer o território, fazendo a curadoria, a gente logo viu que era muito forte a conexão com as águas. A gente sempre privilegiou a vista para o asfalto para a cidade, mas a vista vai ser aqui na Praça do Cardoso, que é uma importante praça aqui da Serra”, declara Flores.


A realização do mural abrangeu 34 casas e contou com a participação dos moradores, que passaram por um curso de pintura em altura para que tudo ocorresse com segurança. Os participantes receberam certificado de formação NR 35 e poderão atuar profissionalmente mesmo após a conclusão do projeto. Ao todo, o mega mural envolveu uma equipe de cerca de 100 pessoas.


Esta é a quarta edição do Mamu em BH. O primeiro painel, de 2018, está localizado no Alto Vera Cruz, região Leste da cidade, e foi realizado pela dupla Cosmic Boys. Em 2022, foi feito o mural na Vila Nova Cachoeirinha pela artista belo-horizontina Criola, que pode ser visto da Avenida Antônio Carlos. Por fim, em 2024, a terceira edição do Mamu contou com uma arte inspirada em pipas e símbolos afro-diaspóricos da artista capixaba Kika Carvalho no Morro do Papagaio.

Ações na comunidade


Ao longo do mês dedicado à pintura do mega mural, o Mamu realizou atividades culturais no Aglomerado da Serra. No dia 31 de agosto, foi feita uma caminhada ecológica no território para o resgate da memória da relação da comunidade com os cursos d’água.


“A caminhada busca refazer o trajeto das lavadeiras quilombolas, saudar as nascentes soterradas pelo asfalto, rememorar a autossustentabilidade das famílias e as relações socioculturais entre a favela e o quilombo”, explicou Makota Kidoialê, liderança do Kilombo Manzo, que atuou em parceria com o Mamu nessa atividade.


Nos dias 5, 6 e 7 de setembro foi a vez de realizar uma intervenção artística no “canão”, uma tubulação de grande diâmetro da Copasa que leva água da Estação de Tratamento de Água (ETA) do Rio das Velhas até o reservatório de água no Bairro São Lucas. Ele cruza a avenida Mem de Sá e se tornou um ponto de referência para os moradores.


Na quinta-feira (11/9), moradores do Aglomerado fizeram uma manifestação contra a intervenção que estava sendo realizada no “canão”, exibindo uma faixa com os dizeres “Respeite a Serra”. A princípio, os manifestantes não teriam concordado com o nome do artista, Cossi, tomando todo o espaço da arte.


Segundo a organização do Mamu, aconteceu um ruído entre os moradores e os artistas. “O trabalho foi interrompido para que o diálogo fosse reestabelecido e o desenho alinhado entre todos. A questão já está resolvida e a pintura foi retomada. O trabalho segue com respeito e paz entre todos os envolvidos”, disse por meio de nota.


Hoje (13/9), haverá uma oficina de pintura para crianças com Raquel Bolinho, artista que espalha cor e alegria por Belo Horizonte por meio de desenhos de cupcakes das mais variadas formas. O dia também será reservado para a realização de um mutirão de limpeza no aglomerado.


Para domingo (14/9), está marcada a inauguração oficial do mural com atividades e apresentações de artistas locais. A festa, acontecerá na Praça do Cardoso, a partir das 14h, reunindo grandes artistas locais em uma programação diversa e para todas as idades, como roda de capoeira, cortejo de carnaval, peça teatral e batalhas de MC.

"Está maravilhoso, e quando a gente vê o olho do próprio morador brilhando, é muito gratificante" Thiago Alvim Artista plástico
"Está maravilhoso, e quando a gente vê o olho do próprio morador brilhando, é muito gratificante" Thiago Alvim Artista plástico Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press


As águas da Serra

Apesar das divisões oficiais – como as vilas Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Santana do Cafezal, Fazendinha, Chácara, Marçola e Novo São Lucas – os moradores se referem às diferentes áreas da comunidade como primeira, segunda e terceira água. Além disso, cada nascente era dedicada a um propósito: uma era pra lavar a roupa, outra era pra beber e fazer comida, tomar banho, entre outras atividades cotidianas.


Cátia Macedo, que mora em uma das casas que compõem o mural, é filha de um dos primeiros moradores do Aglomerado. Ela conta que, na infância, não tinham água encanada, rede de esgoto ou eletricidade. Entre as memórias mais fortes, ela relata a frustração de quando carregava água na lata e acabava escorregando e derrubando a água.


Hoje, ela considera que o mural será um meio importante para lembrar a filha da realidade que viveu no passado. “Meus pais levavam as roupas para as bicas para poder facilitar, para não trazer o peso. Quando eu conto isso para a minha filha hoje ela fala: 'Mãe, como assim? É difícil até de acreditar'”, diz.


Floricena Estevan Carneiro da Silva, professora da rede municipal, de 48 anos, também viveu esta realidade. “Na minha infância eu tive o privilégio de poder brincar diretamente nessas águas. Nossa vida toda era em torno dessas águas aqui”, lembra.


Silva afirma que o acesso à água encanada só se expandiu na década de 1980, e o esgoto só na década de 2000, com o projeto Vila Viva. Ela ainda conta que os córregos do Aglomerado ainda tem partes à céu aberto, mas estão tomados de lixo e esgoto. A educadora espera que o mural possa impulsionar iniciativas para valorizar e recuperar os mananciais, para que a cidade possa evoluir de forma sustentável.


“Hoje, quando eu passo, eu sinto o mau cheiro do esgoto cada vez pior. Isso não era uma realidade para a gente. Então, o ideal seria que as nossas crianças pudessem ir lá usufruir desses espaços verdes em torno da água, brincar nessa água. Imagina que maravilha seria a gente trabalhar aqui na escola e poder levar as crianças para conhecer as águas e construir essa memória”, declara Floricena.

Antes do trabalho dos artistas, as cores que predominavam nas casas da comunidade eram de tijolos e concreto
Antes do trabalho dos artistas, as cores que predominavam nas casas da comunidade eram de tijolos e concreto Leandro Couri/EM/D.A Press


Resgate da memórias


O historiador Alessandro Borsagli, autor de “Rios invisíveis” e pesquisador da relação de Belo Horizonte com seus cursos d’água há mais de 10 anos, conta que a escolha da localização da capital se deu pela confluência dos rios. Entretanto, ao longo dos anos, muitos foram canalizados e sumiram da paisagem, como o Córrego do Leitão e o Acabamundo.


Segundo Borsagli, a relação de BH com as águas sempre foi muito conflituosa. Primeiro com a canalização e depois com o despejo de esgoto sem tratamento nas primeiras décadas. Com o passar dos anos, os rios seguiram sendo “domesticados”. “Desde o início já se tinha a ideia de que canalizar os cursos da água, de retificar e canalizá-los de acordo com a planta da capital, tornando-os retilíneos. Não existem ângulos de 90 graus naturalmente, então já é uma relação de ruptura”, relata.

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Borsagli aponta, ainda, que grande parte dos problemas com enchentes se dá pela ocupação muito próxima ao leito dos rios e potencializada pela canalização dos mesmos. Ele explica que há tecnologia disponível para recuperar rios canalizados e águas poluídas, mas depende de investimentos.


“É aquela velha história, quem não é visto não é lembrado. Então, um mural desse é imprescindível. Porque a partir dessas iniciativas nós podemos, no futuro, recuperar esses cursos d'água. Para que as próximas gerações possam brigar para a recuperação deles. Têm exemplos na Europa e na própria América que mostram que é totalmente possível, basta ter vontade política”, defende. 

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