Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

O colapso da escola

Não proponho utopias grandiosas; proponho deslocamentos minimamente corajosos

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Assistimos ao desmoronamento do mito da escola. De estudante descendo as calças do professor no corredor até chegar ao baixo nível de aprendizagem, o caminho é longo e parece infinito. Ela virou um espaço de gestão de mal-estar; professores e gestores sabem disso. Lugar especializado em apagar incêndios e gerir incômodos. Com isso, aumenta o número de profissionais afastados, sobretudo devido à perda da saúde mental, ao mesmo tempo que cresce a evasão dos estudantes, seja presencial ou simbólica, como nos casos de desatenção e de corpos tristes.

Mas precisamos começar com uma ressalva conceitual: falamos da escola, não da educação. Muita gente, por desatenção ou por outros interesses, desconsidera essa diferença. A educação continua inerente ao processo civilizador. Se há pessoa, há educação. Tolice colonizadora acreditar que ela é apenas um sistema formal de organizar carteiras e engradear conteúdo. Ela existe desde as cavernas, quando alguém tentou ensinar algo a outro alguém.

Escola é diferente. Algumas vezes sua história se mistura à educação. Em outros momentos, distancia-se consideravelmente. Isto é, escola não é sinônimo de educação. A confusão é conveniente — como toda boa propaganda — porque permite que um sistema se proclame responsável por algo vasto, íntimo e imprevisível (a educação), enquanto, na prática, entrega um produto muito menor, mensurável e vendável: presença, conformidade, certificados.

A escola brasileira, desde sempre, foi menos um espaço de educação e mais um pronto-socorro das crises sociais que o Estado se recusa a resolver. Ora funciona como creche para liberar a força de trabalho dos pais, ora como quartel disciplinador para “ocupar” jovens e impedir que virem estatística da violência, ora como programa assistencial para maquiar índices de desigualdade. Nunca se trata de educação no sentido pleno — formação de pensamento, cultivo de sensibilidade, abertura para a crítica — mas de um uso instrumental, governamental e até policial: conter corpos, administrar riscos sociais, manter o fluxo da economia. O paradoxo é grotesco: exige-se que a escola cure os males de uma sociedade inteira, enquanto se nega a ela a função mais elementar, que seria educar.

Antes que o romantismo pedagógico se entusiasme, admitamos uma verdade desconfortável: em muitas sociedades anteriores à revolução industrial, aprender era espalhado — na oficina, na casa, no campo, na conversa prolongada com um adulto que tinha um ofício, uma história, um senso de propósito.

A revolução industrial foi um marco para essa engenharia do tempo humano. Para que a fábrica funcionasse, era preciso transformar o humano em um relógio: chegar no horário, repetir movimentos, obedecer ao apito. Não é coincidência histórica que, em paralelo à crescente necessidade de mão de obra disciplinada, se operacionalizassem técnicas escolares: horários, sinos, filas, carteiras alinhadas, currículos que privilegiavam leitura funcional, cálculo e normas comportamentais. A escola tornou-se, com todo o seu verniz civilizatório, uma antecâmara da fábrica — um local onde se fazia a preparação para a produtividade e, sobretudo, para a submissão aos regimes temporais e hierárquicos do trabalho assalariado.

Michel Foucault nos ensinou como se constrói o sujeito disciplinar: com relógios, com listas, com olhares que vigiam, com exames que marcam. A escola se transformou, então, no modelo perfeito desse dispositivo: corpos calibrados, gestos indexados, olhares treinados para a cadeira, o caderno, o teste. A escola passou a funcionar como depósito e laboratório de gestão desses corpos: ali se confina o “inconveniente” até que ele se torne, por meio de técnicas laboratoriais, um adulto tolerável à ordem produtiva — ou seja, até que se torne útil, enquanto os que já são “úteis” possam trabalhar em paz. Afinal, na escola até ensinamos, mas o que queremos mesmo é que os corpos ali depositados não nos atrapalhem enquanto “ganhamos a vida”. Se começam a atrapalhar demais, medicamos, ou marcamos uma reunião com a supervisora.

O que parece estar perturbando o modelo produtivo é que esse modelo, gestor de um certo mal-estar, parece entrar em colapso — palavra tão dramática que agrada tanto aos analistas apocalípticos quanto aos gestores neoliberais. Porém, não precisamos de uma cena dantesca de edifícios desabando. A partir da perda de sua função social e da erosão da legitimidade pública, esse ambiente apenas demonstra o descompasso entre o que se promete e o que se entrega.

Assistimos, hoje, a uma escola que está saturada de ser uma espécie de “solucionadora para os problemas sociais”. Isto é, parece surgir uma espécie de negação silenciosa — às vezes nem tão silenciosa assim — em continuar sendo um lugar seguro e reconfortante para os corpos improdutivos, como crianças e jovens. Aquela escola, que nasceu como uma espécie de creche, empresa, tribunal, dispositivo de bem-estar enquanto os “adultos” trabalham, vai colapsar.

Então, o que fazer com o colapso? Não proponho utopias grandiosas; proponho deslocamentos minimamente corajosos. Recuperar a diferença entre escola e educação: entender que educação é cuidado, é mediação de significados, é tornar capacidades possíveis. Reconfigurar instituições para que a escola não seja depósito de corpos, mas ponto de encontro entre saberes comunitários, ofícios, pesquisa, tempo livre e responsabilidade política. É preciso, nesse sentido, democratizar a autoridade pedagógica — não para esvaziá-la em favor do mercado, mas para devolvê-la às comunidades, aos estudantes, aos professores.

Talvez o colapso da escola seja, no fundo, uma chance histórica: deixar ruir a ilusão de que ela daria conta de tudo e, finalmente, perguntar o que queremos cultivar como sociedade. Se a educação sempre escapa das grades, talvez seja hora de assumi-la como prática viva, feita de encontros, conflitos e invenções coletivas — e não como engrenagem de uma máquina falida.

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O que está em jogo não é salvar a escola, mas decidir se aceitaremos seguir domesticando corpos ou se ousaremos criar espaços onde a vida, e não a produtividade, seja a medida do aprendizado.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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