Vozes da África ecoam em Minas
A obra e a presença do poeta franco-congolês Gabriel Okundji são destaques do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes e São João del-Rei
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Siga no“Quem canta a injúria incita o ódio e aumenta o infortúnio
sofrendo o insulto à noite a gente remói a mão dada de manhã
o coração perde sangue, quem o feriu não sabe nada
o tempo acalma a cólera apaga o tormento e cala a dor
não tem remédio na terra melhor que uma memória
conciliadora
não se renegar diante da humilhação, a vida é uma oferenda”
Os versos acima são do franco-congolês Gabriel Mwene Okundji, considerado uma das mais expressivas vozes da poesia africana em língua francesa nas últimas décadas. Ele fará dois lançamentos de sua obra em Minas Gerais neste mês. A antologia “Como uma sede de ser homem, ainda”(“Comme une soif d’être un homme, encore”) será lançada na 14ª edição do Festival Artes Vertentes, realizado em Tiradentes e São João del-Rei entre 11 de 21 de setembro, e na Academia Mineira de Letras (AML), em Belo Horizonte.
A antologia impressiona o leitor pela consistência e extensão dos poemas seriados e pela prosa poética em tom intimista que remonta a uma África ancestral, ora lírica, ora contundente. “Você pergunta: — A vida vale a pena ser vivida? Eu respondo: — A melodia do mundo está no ritmo do teu coração. Você diz: — Eu vejo os meus sonhos morrerem o tempo todo. Eu respondo: — A minhoca esmagada não duvida da sua estrada.”
E também: “Quando você grita / Eu compartilho o horror do teu furor. / Quando se apaga a paixão da tua cólera / O ritmo do teu coração faz dançar o azul do céu. E você diz: — Você é mais forte que a minha força, eu quero a tua alma. / E eu digo: — A minha alma é grão de areia no fundo da tua mão.”
Nascido no Congo-Brazzaville em 1962 e radicado na França, Okundji ganha agora a sua primeira tradução para a língua portuguesa com uma obra focada nas lutas pela independência de terra sua natal contra a colonização europeia. Os poemas da antologia, traduzidos pelo poeta Guilherme Gontijo Flores, foram criados entre 1996 e 2014 e primam pela valorização de identidades étnicas imanentes e pela liberdade de expressão.
Sua poesia tem ressonância com a obra do senegalês Léopold Sédar Senghor (1906-2001), outro expoente da cultura africana e pioneiro do movimento literário Negritude, de resistência à cultura colonialista. Okundji, inclusive, recebeu o Prêmio Léopold Sédar Senghor (2014), além do Grand Prix Littéraire d’Afrique Noir (2010) e do Prêmio Internacional de Poesia Benjamin Fondane (2016). Na França, seus livros são de responsabilidade da tradicional editora Gallimard.
RUPTURAS
“A violência e o medo, a contradição e o engano, bem como a beleza e a sensibilidade, a cooperação e o sonho estão no tecido da antologia 'Como sede de ser homem, ainda'. Num tempo de rupturas dos pactos que sustentam a vida em comunidade, a obra de Okundji — sem ignorar a herança histórica dessas rupturas — demonstra a importância de recuperarmos ‘a sensibilidade necessária ao humano em sua relação com o cosmo’”, analisa Edimilson de Almeida Pereira, um dos mais importantes poetas da literatura brasileira contemporânea, que assina o posfácio da obra. Edimilson Pereira participará de mesas redondas no Festival Artes Vertentes e fará leituras do seu livro “Porte Étoile” (editora Cobalto).
“A poética de Gabriel Mwene Okundji se desenha como um território de fraternidade, apesar das fraturas que o abalam. Em poemas longos ou concisos, o poeta acentua o vínculo seminal entre o pensamento e a palavra, o homem de agora e os seus ancestrais, o corpo humano e a natureza. Para que esse seja um território para todos, há que se reconhecer a força das hierarquias, tanto quanto as mudanças que as afetam, abrindo caminhos para novas ordens de mundo”, analisa também Edimilson, que completa 40 anos de carreira literária.
Promovido anualmente, o Festival Artes Vertentes foi criado em 2012 pelo diretor artístico da editora e produtora de eventos Ars et Vita, Luiz Gustavo Carvalho, e pela diretora-executiva da Ars et Vita, Maria Vragova. A agenda deste ano inclui o lançamento de nove livros, mesas de debate, cafés literários e encontros entre público e autores. A programação conta com 50 atividades que envolvem literatura, artes visuais e cênicas, música e cinema, com tom curatorial “Entre as duas margens do Atlântico”.
LANÇAMENTOS
Além da antologia de Okundji, o festival divulgará o livro “Algum país entre meus prantos & Rapsódia vermelha” (Ars et Vita), do poeta haitiano Jean D'Amerique. Traduzido por Henrique Provinzano e Thiago Mattos, o livro traz poesia marcada pela urgência política, pela violência da memória e pela resistência poética diante da tragédia coletiva também de uma terra oprimida pela colonização. E ainda “Ópera Poeira”, “A catedral dos porcos”, “Sol descosturado”, “Rapsódia vermelha” e “Algum país entre meus prantos”, do mesmo autor, todos pela Ars et Vita.
Entre os convidados internacionais, o festival contará com a presença da premiada escritora franco-camaronesa Léonora Miano. Ela lançará “Afropeia” e “O oposto da branquitude (Pallas Editora). Já o romancista camaronês radicado na Suíça, Max Lobe, lançará “A dança dos pais (Ars et Vita), que aborda colonialismo, luta por independência e relações familiares atravessadas pela homofobia. O festival terá ainda a participação da pesquisadora e ensaísta Leda Maria Martins, referência nos estudos sobre corpo, performance e ancestralidade negra.
“Tiradentes foi um dos primeiros núcleos históricos tombados do Brasil, o que torna ainda mais significativa essa conexão entre reflexão contemporânea e preservação”, avalia Maria Vragova. “A cada edição, as performances do Festival Artes Vertentes constituem momentos muito especiais, pois são pontos da programação de intercessão entre as diversas linguagens que integram o festival, desconstruindo as fronteiras entre as linguagens artísticas”, completa Luiz Gustavo Carvalho.
Em Belo Horizonte, a Academia Mineira de Letras (AML), fará o lançamento no dia 23 de setembro, da antologia “Como uma sede de ser homem, ainda”. O evento terá entrada gratuita e aberto ao público, contará com a presença do autor, do tradutor Guilherme Gontijo Flores e mediação de Jacyntho Lins Brandão, presidente da AML.
Trajeto
Você só tem uma história
A tua história é incomensurável
Ela se estende até perder de espanto
nas margens da paixão
A tua história é preciosa
E eu exijo de você
um silêncio
Não esse silêncio dos estados normais
à espreita do menor sussurro
Exijo de você
o silêncio de um remanso
ou de um lago
ou de uma lágrima
Não esse silêncio fugidio
que oxida os pactos
direto nas fraldas do idioma
Eu queria te guiar
a passinhos de ferido
pela voz do silêncio
ao segredo do sílex.
Pesares
Seria difícil dizer a palavra exata
o único jeito de não ficar louco
é não pensar nisso.
Pesares
de uma esperança quebrada de um desejo confesso
Pesares
de um dia perdido
que penduramos no coração
símbolo de uma desglória
sinal de desvitória de um porvir previsto
Pesares
de alvorada a alvorada dia após noite
até o tempo da memória da lembrança.
Sopro
Nem eu sem o eu do sopro do exílio
nem denominador das colheitas de chuvas
nem emblema do afeto, nem visionário da lua
nem chama lunar do canto banto
nem curva de uma sede no intervalo do nada
nem mão estendida à graça da sonolência
nem astúcia, nem fúria, nem recuo
nem memória altiva das calçadas sem alma
nem cor do esquecimento dos quatrocentos anos de areia
nem riso do ocaso no oeste das esperanças
nem turbilhão de vento-sul
nem amante de uma língua em maré alta
eu
persigo os entornos do verbo
na terra da imobilidade das almas.
Moradia
Um lugar
entre duas e duas terras
mil desvios
a alvorada se exila no seio da sua própria luz
entre duas e duas lendas
face à ruminação de uma alma atingida pela errância
face à vertigem da medida exata do espaço
no fim de um passado enterrado em paciência
eu moro.
O Pampu falou:
O sol do céu não é a felicidade alheia
a sua luz e o seu calor não são de clã nenhum.
A terra de onde a gente nasce
em nós guarda os seus traços:
traço de homem nomeado
traço de uma língua falada
traço de um espaço percorrido...
A terra se levantou, está de pé nas suas raízes
aqui está a árvore que abriga a placenta da criança
a árvore, em seu corpo, é uma árvore
o Homem, em seu corpo, é um Homem
mas o Homem e a árvore têm o mesmo corpo!
Aqui está o domínio de uma fala de Homens,
que nenhum sol ousará dobrar até o fim dos tempos
o esplendor vem de Okoyo, a amplidão vem de Euó
Escutem!
O dom da dignidade está em Kéllé, a fidelidade volta a Etoumbi
escutem bem esse sussurro dos lábios proclamando a criança!
Na flora imensa de Mbama, ressoa o hino de Mbomo
Ô divina eloquência de uma graça de amor!
todos que escutaram o nome aplaudiram
Mamonome! Eèh da! Aí está você chegando ao mundo!
Leve o teu sol como edifício imemorial
se esforce pra exultar a lenda do teu caminho
a alegria é testemunho da alegria
o prazer é irmão da felicidade
o homem é a narrativa do homem!
Mamonome! Eh da! Aí está você nomeado!
Seja o grito do teu próprio sopro
a humildade do sangue que corre em tua pele
vele pra sempre por teu nome.
— O meu coração se embriaga; a quem oferecer este desejo
que perturba o universo?
Eu respondo:
— Só o coração sabe a beleza das coisas.
E você diz:
— O meu coração não sabe o que torna o céu tão doce ao olhar.
E eu respondo:
— Nos olhos que contemplam, o mundo encontra o esplendor.
“COMO UMA SEDE DE SER HOMEM, AINDA”
• De Gabriel Mwene Okundji
• Tradução de Guilherme Gontijo Flores
• Ars et Vita
• 145 páginas
• R$ 89
• Lançamentos:
Dia 20/9, às 15h, na Taberna d’Omar, em Tiradentes (Rua Direita, 187).
Dia 23/9, às 19h30, na Academia Mineira de Letras, em Belo Horizonte (Rua da Bahia, 1.466) Festival Artes. Vertentes: https://www.artesvertentes.com