As redes no jogo político
O caso nepalense é fundamental para encararmos as redes sociais e os algoritmos, como instituições capazes de decidir eleições, incriminar ou absolver pessoas
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Siga noConhecido no mundo sobretudo por abrigar parte do Himalaia, inclusive parcela do Monte Everest, o Nepal ocupa o noticiário mundial nos últimos dias diante da onda de protestos liderada pela sua população jovem contra o governo de K.P. Sharma Oli, seu ex-primeiro-ministro, que renunciou ontem ao cargo. Uma república parlamentarista, o país asiático vive seu momento de maior turbulência desde 2015, quando uma nova Constituição entrou em vigor meses após um terremoto matar cerca de 8 mil habitantes.
Os protestos desta semana têm como fagulha o bloqueio das redes sociais no Nepal por determinação do governo local. A administração Sharma Oli tinha o objetivo de frear o que chamava de compartilhamento em massa de discurso de ódio e de notícias fraudulentas nessas plataformas – um problema que se estende a todas as democracias do globo.
O bloqueio não durou muito tempo. Iniciado na quinta-feira passada (4), foi descontinuado na manhã de ontem, considerando o horário de Brasília. Horas depois, diante das manifestações que deixaram ao menos 19 mortos e uma centena de feridos, K.P. Sharma Oli renunciou ao cargo de primeiro-ministro.
Ainda que a mobilização dos mais jovens tenha objetivos secundários, como o protesto contra o nepotismo e a corrupção no Executivo, o mote principal está totalmente voltado ao bloqueio das redes. A situação vivida pelo país asiático é simbólica para entender o peso que as big techs, como a Meta (proprietária do Instagram e do Facebook) e o X (antigo Twitter), têm na sociedade atual.
As redes ocupam, cada vez mais, o papel de verdadeiras instituições do jogo político. Mais do que as plataformas, os próprios algoritmos (conjunto de códigos capaz de executar uma tarefa específica ou resolver um problema) delas assumem um papel institucionalizado, como bem observam os pesquisadores Ricardo F. Mendonça, Fernando Filgueiras e Virgilio Almeida no livro "Política dos Algoritmos", a ser lançado em outubro pela Ubu Editora.
Mas, como o Brasil se encaixa nessa realidade? Nos anos 1980, nosso país, saindo da ditadura, tinha uma grande demanda alimentar – realidade que ainda permanece na nação atual, mas em proporção bastante inferior à de 40 anos atrás. Uma década se passou, e essa sombra permaneceu em nossa sociedade a partir da hiperinflação, só estabilizada com o Plano Real de Fernando Henrique Cardoso em 1994.
Nos anos 2000, a demanda mudou consideravelmente e passou a ser pelo consumo de bens materiais. A ascensão financeira abriu portas para os mais pobres acessarem produtos e serviços sempre negados a essa parcela da população – uma realidade que teve dificuldades para ser mantida a partir da crise de 2008.
Na década atual, no entanto, a exigência principal é por conectividade – o acesso ao smartphone de última geração e aos dados móveis, porta de entrada para o mundo digitalizado. Basta ver como o desafio principal das escolas tem sido a restrição ao uso do aparelho durante as aulas. O mesmo vale para consultórios médicos e até mesmo em nosso trabalho e em nosso momento de descanso, muitas vezes ocupado pela tela.
O caso nepalense é fundamental para encararmos as redes sociais e, em primeira camada, os algoritmos, como instituições capazes de decidir eleições, incriminar ou absolver pessoas e promover políticas públicas.
Se o diagnóstico dessa realidade é o primeiro passo, o segundo precisa se atentar à importância dessas tecnologias serem regidas pela democracia. O caminho, como o acontecido em Catmandu mostra, não é pela coerção e restrição do acesso, mas pela necessária regulamentação dessas instituições – como já tem sido discutido no Supremo Tribunal Federal (STF), a partir da primordial revisão do Marco Civil da Internet.
O desafio se amplia ainda mais com o surgimento e a consolidação da inteligência artificial. Em um contexto no qual as leis e a democracia brasileiras ainda engatinham na discussão sobre as redes e seus algoritmos, a velocidade da evolução da tecnologia rumo à IA aumenta ainda mais os desafios. Não há mais tempo a ser perdido para o inadiável e inevitável debate sobre tal questão.