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Tropeiro de Lagoa Santa a Diamantina?

Sem uma abordagem ambiental sólida, corremos o risco de comprometer o próprio patrimônio que desejamos exaltar

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A crescente valorização da biodiversidade e a busca por alternativas sustentáveis de desenvolvimento tornam urgente a ampliação do ecoturismo em escala global, com especial atenção ao Sul Global, onde há vastas riquezas naturais e comunidades historicamente excluídas dos grandes fluxos econômicos. Ao promover o ecoturismo, é possível alavancar o crescimento econômico das comunidades locais por meio da valorização dos seus saberes, da geração de emprego e da inclusão social, ao mesmo tempo em que se preserva o patrimônio ambiental.


No entanto, para que esse potencial se concretize de forma justa e duradoura, é essencial a elaboração e a implementação de um plano de longo prazo que concilie a conservação ambiental com o uso responsável dos recursos naturais, fomente o fortalecimento das economias locais e assegure a justiça social como princípio estruturante.


O projeto da Estrada Cênica da Cordilheira do Espinhaço, anunciada recentemente, representa, sem dúvida, um marco para o turismo sustentável em Minas Gerais e no Brasil. No entanto, é essencial reconhecer que benefícios concretos dessa iniciativa – a tanto para o desenvolvimento regional quanto para a preservação cultural e natural, - só serão plenamente alcançados quando a dimensão socioambiental for tratada de forma aprofundada, integral e com muita ciência.


A cordilheira do Espinhaço, com sua parte mineira reconhecida como Reserva da Biosfera pela Unesco, é um território de altíssima sensibilidade ecológica, que abriga espécies únicas e ecossistemas frágeis. É também palco de intermináveis e históricos conflitos socioambientais, que tem crescido em vez de ser sanados. A transformação dessa região em uma rota cênica de turismo precisa ir além da valorização estética e cultural: ela exige compromisso sólido com a conservação ambiental, com ações concretas de proteção da biodiversidade, controle do impacto do fluxo turístico e educação ambiental para visitantes e comunidades locais.


Sem uma abordagem ambiental sólida, corremos o risco de comprometer o próprio patrimônio que desejamos exaltar. A estruturação da estrada com asfaltamento, mirantes e sinalização vem sendo discutida há décadas e é muito importante, mas deve caminhar lado a lado com planos de manejo ambiental, políticas de conservação e engajamento comunitário.


É preciso conhecer a biodiversidade e sua fragilidade a cada quilômetro. Somente assim a proposta deixará de ser um projeto turístico qualquer para se consolidar como um verdadeiro legado de turismo sustentável. Por exemplo, a razão pela qual o Parque Nacional da Serra do Cipó e a Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira foram criados é para proteger a biodiversidade da região. Contudo, a própria rodovia MG-10 representa um dos maiores problemas para a preservação da biodiversidade na região.


A MG-10 vive um cenário preocupante. O tráfego intenso, com circulação de caminhões bitrem de mais de 40 toneladas – incompatíveis com a estrutura da via – compromete a segurança e a integridade da estrada. A ponte de pista única sobre o rio Cipó, por exemplo, não suporta esse tipo de carga. Mesmo após décadas de asfaltamento, muitas pontes da via ainda não foram duplicadas, agravando o risco de acidentes.


A situação é ainda mais crítica a partir do km 100, na subida da serra. O trecho com piso de intertravado vem sendo destruído pelo peso de veículos inadequados ao traçado sinuoso da estrada.


Além disso, a sinalização ambiental ao longo da MG-10 é deficiente. Placas instaladas por moradores antes das obras foram removidas e as atuais, ainda insuficientes, não contemplam os pontos críticos. Especialistas destacam que o conhecimento local e técnico é fundamental para definir onde e como essa sinalização deve ser feita.


Outro ponto sensível é a instalação de uma antena de comunicação da polícia, há cerca de uma década, em uma área de alta relevância paisagística e ambiental – justamente sobre uma população da flor-de-papel (Diplusodon orbicularis), espécie endêmica e ameaçada. A estrutura compromete a paisagem e evidencia a falta de critérios democráticos e técnicos nas decisões sobre intervenções em áreas sensíveis.


Até mesmo a manutenção rotineira da estrada, como a capina das margens, tem gerado impacto ambiental. A autorização para uso de capina mecânica, há cerca de dez anos, ignorou alertas técnicos sobre o risco de proliferação de espécies invasoras. A prática facilitou o espalhamento dessas espécies, inclusive em nascentes e áreas protegidas. O resultado é visível hoje: desequilíbrio ecológico em um dos ecossistemas mais singulares do país.


Além dos problemas estruturais e da falta de sinalização, a MG-10 enfrenta uma ameaça silenciosa, porém devastadora: a proliferação de espécies invasoras ao longo da rodovia, como capim-gordura, braquiária, leucenas, eucaliptos e pinheiros. Essas plantas, alheias ao bioma local, vêm ocupando áreas sensíveis, incluindo nascentes e os arredores do Parque Nacional da Serra do Cipó, afetando a biodiversidade e descaracterizando a paisagem.


A pergunta é simples: um turista atravessaria quilômetros para contemplar um mar de capim exótico ou uma floresta de árvores alienígenas? A resposta aponta para a urgência de políticas eficazes de erradicação e controle dessas espécies.


Investir em turismo exige responsabilidade e visão de longo prazo. Para isso, é essencial valorizar a singularidade de cada trecho da estrada. A biodiversidade não pode ser tratada como homogênea – “não se pode comer tropeiro de Lagoa Santa a Diamantina”. Cada paisagem conta uma história e deve ser interpretada de forma a enriquecer a experiência do visitante.


A natureza é o alicerce do patrimônio cultural, histórico e turístico da região. Preservá-la, com base em ciência e gestão inteligente, é garantir que os investimentos sejam sustentáveis, respeitosos e verdadeiramente transformadores.


GERALDO FERNANDES

Membro titular da Academia Brasileira de Ciências e professor titular de ecologia da UFMG

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