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Abro a biografia de João Cabral de Melo Neto escrita por Ivan Marques, publicada em 2021, para reler o capítulo sobre a sua experiência no Equador, onde foi embaixador de 1979 a 1981. Vinte anos depois, minha família e eu também moraríamos em Quito. Para minha mulher e para mim, foi o nosso segundo posto na carreira diplomática.
Nenhuma experiência humana pode ser replicada. O Equador do poeta pernambucano não foi o nosso. Mas o livro de Ivan Marques, verdadeiro modelo de como deve ser o estudo biográfico sobre um autor, me transporta à época em que lá vivi.
O centenário de nascimento, em 2020, foi profícuo para a memória de João Cabral, falecido aos 79 anos em outubro de 1999. Ao escrever isso, noto que meu pai morrera apenas um mês antes, embora bem mais jovem.
Além da biografia de Ivan Marques, houve pelo menos, no período do centenário, a “Fotobiografia” de 2021, organizada por Eucanaã Ferraz e coordenada por Valéria Lamego; e uma edição da obra integral, “Poesia completa”, lançada pela Alfaguara em 2020, com prefácio de Antonio Carlos Secchin.
Temos os três livros em casa. No início de 2022, reabertas as fronteiras na Malásia depois de dois anos de pandemia, eu os encomendei a um colega, diplomata mineiro que vinha trabalhar na embaixada em Kuala Lumpur. Selecionei também, entre outros, “Copo vazio”, de Natalia Timerman, “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk, e “O castiçal florentino”, de Paulo Henriques Britto, sobre o qual eu viria a escrever um ensaio, que publiquei no “Estado da Arte”.
Falta na nossa biblioteca a edição bilíngue, editada pela embaixada em Quito em 2020, quando João Almino lá era embaixador, dos 10 poemas cabralinos sobre o Equador contidos em “Viver nos Andes”, seção do livro “Agrestes”, de 1985.
Na edição da Alfaguara, são vários os poemas, alguns inéditos, a mencionar o Chimborazo, imenso vulcão dormente, ponto no mundo mais distante do centro da Terra. Em três deles, há menção a Simón Bolívar.
O Libertador, que subiu a montanha em 1822, escreveu um poema em prosa, “Mi delirio sobre el Chimborazo”. O texto é mistura de postulado político e experiência metafísica. Há trechos bonitos, como este conselho – péssimo, a meu ver: “não escondas os segredos que o céu te revelou: diz a verdade aos homens”. A neve é um “imenso diamante que me servia de leito”. Termina o poema, que podemos tomar como a descrição de um transe, com os versos: “abro com minhas próprias mãos as pálpebras pesadas: volto a ser homem, e escrevo o meu delírio”.
Em “Bolívar e o Chimborazo”, João Cabral explica que “Bolívar viu no Chimborazo todo o enorme de sua missão”. Mas, de maneira muito característica da secura do nosso poeta, contrapõe-se em outro poema, “Sem retórica”, à noção de que o vulcão inspira grandiloquência; estima ser o Chimborazo “apenas geologia”, cuja altura “nenhuma grandeza anuncia”.
Trabalhei três anos e meio no Equador; visitei o páramo do Cotopaxi, a quase cinco mil metros de altitude; mas nunca subi às alturas do Chimborazo. O trajeto de 200 quilômetros pelos Andes, desde Quito, dura quase quatro horas. Nossa filha era pequena, não viajava confortavelmente, e isso restringiu os passeios pelo país. E no entanto, sou fascinado com o vulcão desde a infância, quando morávamos em Montevidéu e minha mãe viajou a Quito para uma reunião. Voltou trazendo-nos um livro sobre o Equador, de 1970. O autor era Arturo Eichler, nascido na Alemanha e, exilado do nazismo, naturalizado equatoriano.
As fotos revelavam uma vida distante, misteriosa. Eichler deixou fama como um dos primeiros conservacionistas ambientais, e a obra, registro de suas andanças pelo país de adoção, em estilo de romance de aventuras, focaliza a belíssima natureza equatoriana. Um dos capítulos narra sua ascensão ao Chimborazo em 1947. O prefácio é de Alfredo Pareja Diezcanseco, intelectual que seria mais tarde chanceler, no período em que João Cabral de Melo Neto foi embaixador em Quito; é, por isso, citado na biografia de Ivan Marques.
Para as crianças que nós éramos, o mais surpreendente era a capa, de cores intensas, desenhada por Oswaldo Guayasamín, mostrando plantas tropicais. Bem no centro está, límpido, azul, com o cone branco, um vulcão. Acarinhei-me ao livro. Guardo-o até hoje, com suas páginas já tão desgastadas. Na infância, eu não podia prever que um dia trabalharia em Quito, conheceria a família Guayasamín e passaria anos desejando conduzir o carro ao Chimborazo.
Um dia, no Equador, revelei à fotógrafa Marcela García essa antiga aspiração. Ela então me disse: “Quando meu avô comprou uma fazenda, no começo do século XX, o contrato especificava: ´Incluye el cerro´. O morro assim mencionado na escritura de posse da terra era o Chimborazo”. Pareceu-me extraordinário que um particular pudesse ter sido dono do maior dos vulcões equatorianos; julguei a história digna de ser contada em meu livro “Geografia do tempo”.
O Chimborazo, que o poeta-diplomata considera ser “só capaz de ensinar silêncio” e viver em “uma imensa espera”, simboliza todos os lugares cobiçados e que não conheci até hoje: Pantanal, Ceará, Porto Seguro, Hong Kong, Luang Prabang, Castel del Monte, Iasnaia Poliana. A lista é, na verdade, bastante longa. Forma uma geografia própria, fustigada pelo tempo, cada vez mais inalcançável.
Os anos passam, e os sonhos se eternizam. O vulcão serviu de inspiração grandiosa para Bolívar e monumental para João Cabral. De maneira bem mais simples, eu gostaria apenas de pegar um avião, satisfazer a ambição da infância, ver o Chimborazo e, diante de sua imponência, acreditar na noção de eternidade da Terra. Pensar na beleza do mundo e viver assim o meu delírio.
O embaixador Ary Quintella, diplomata de carreira, publicou em 2024 o livro “Geografia do tempo”
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.